2. Ciência e Religião em Perspectiva: inimigas mortais ou amizade a ser (re)descoberta? – INDEPENDÊNCIA

A posição da Independência (chamada por alguns de “contraste”) é uma posição pacificadora, muito popular até hoje em circuitos acadêmicos, teológicos e científicos. Ela afirma que ciência e religião são esferas independentes, estão em domínios separados, estanques, e por isso, o conflito não se justifica. Ademais, elas usariam diferentes linguagens, teriam diferentes funções, fazendo diferentes perguntas e usariam métodos diversos entre si. A ciência lidaria com o objetivo e impessoal, a religião com o pessoal e subjetivo. (BARBOUR, 2000, p. 32)

Esta posição é uma forma eficiente de se evitar conflitos, e foi exatamente a forma utilizada pelo teólogo Langdon Gilkey no julgamento do Arkansas de 1981, quando a Suprema Corte americana entendeu que o criacionismo deveria ficar fora das aulas de ciências nas escolas públicas por se tratar de uma posição religiosa. Gilkey argumentou:

1) A ciência procura explicar dados objetivos, de domínio público, reproduzíveis. A religião indaga sobre a existência da ordem e beleza no mundo e as experiências de nossa vida interior (como a culpa, a ansiedade, a falta de sentido, de um lado, e o perdão, a confiança, a plenitude, de outro.) 2) A ciência formula perguntas objetivas sobre o “como”. A religião formula perguntas pessoais sobre o “porquê”, o sentido e a finalidade, nossa origem essencial e nosso destino. 3) As bases da autoridade da ciência são a coerência lógica e a adequação experimental. A autoridade religiosa suprema pertence a Deus e à revelação, compreendida por meio de pessoas que receberam a iluminação e o discernimento e validada em nossa própria experiência. 4) A ciência faz previsões quantitativas que podem ser testadas experimentalmente. A religião precisa usar uma linguagem simbólica e analógica, porque Deus é transcendente. (GILKEY, 1985 apud BARBOUR, 2000, p. 33-34)

A posição da Independência foi popularizada nos circuitos científicos em parte pelo célebre Stephen J. Gould, considerado o maior paleontólogo do séc. XX, e um dos mais notáveis divulgadores da ciência. Em seu livro “Pilares do Tempo”, o autor apresenta o conceito de MNI: Magisteria Não-Interferentes (no original inglês, NOMA: Non-Overlapping Magisteria). Segundo sua definição, um magisterium seria um “domínio de autoridade doutrinal”. Sendo assim, ciência e religião ocupariam dois “magisteria”:

Esses dois magisteria não interferem um com o outro, nem tampouco englobam todas as especulações (considerem por exemplo, o magisterium da arte e o significado da beleza). Para citar antigos clichês, a ciência se interessa pelo tempo, e a religião pela eternidade; a ciência estuda como funciona o céu, a religião como ir para o céu. (GOULD, 2002, p. 13)

Ian Barbour identifica na neo-ortodoxia cristã protestante a cristalização da posição da Independência dentro dos circuitos religiosos. Ele afirma:

A neo-ortodoxia cristã protestante tem defendido uma separação mais explícita entre ciência e religião, procurando recuperar, dos tempos da Reforma, a ênfase na centralidade de Cristo e na primazia da revelação, ao mesmo tempo em que aceita inteiramente os resultados da moderna exegese e pesquisa científica bíblica. Karl Barth e seus seguidores defendem que Deus só pode ser conhecido enquanto revelado em Cristo e confirmado na fé. Ele é o transcendente, o inteiramente outro, o incognoscível, exceto quando se revela. A fé religiosa depende inteiramente da iniciativa divina, e não de uma descoberta do tipo científico. A esfera principal da atuação de Deus é a história, e não a natureza. Os cientistas são livres para prosseguir com seu trabalho sem a interferência da teologia e vice-versa, uma vez que seus métodos e objetos de estudo são totalmente diversos. A ciência baseia-se na observação e razão humanas, enquanto a teologia baseia-se na revelação divina. (BARBOUR, 2000, p. 33)

Uma outra forma de separar as proposições científicas das teológicas, comum no pensamento católico e neo-ortodoxo, é a distinção tomista de causalidade primária e secundária. Deus, como causa primordial, agiria por meio de causas secundárias do mundo natural que a ciência estuda. Como os dois tipos de causa operam em níveis totalmente diferentes, a análise científica pode desenvolver-se em seus próprios termos, sem se referir à teologia. Segundo Barbour, a explicação científica é completa em seu próprio nível, sem quaisquer lacunas em que Deus precisaria intervir, enquanto o teólogo pode dizer que Deus mantém e utiliza toda a sequência natural. A causalidade primária representa uma ordem diferente de explicação, em resposta a perguntas muito diferentes daquelas formuladas pelo cientista a respeito das relações no mundo natural. (BARBOUR, 2000, p. 131)

Embora evitando o conflito, a posição da independência exclui a possibilidade de um enriquecimento mútuo que pode vir a ser frutífero para uma compreensão mais totalitária da realidade. A vida é experimentada em sua integralidade, e não em compartimentos estanques, e a posição da independência também não se livra totalmente de certas dicotomias – de um lado o “Como?” e de outro o “Por quê?”, como bem apontou POLKINGHORNE (1998, p. 21). Ademais, segundo ele, “se as respostas a estas perguntas devem fazer algum sentido, precisa haver algum tipo de consonância entre elas.”

Brakemeier concorda, concluindo que […] o divórcio entre o crer e o saber acarreta prejuízos não só para as pessoas, como também para a própria religião e ciência. Existe forte interdependência. Mas ela é difícil de definir. Tanto mais importante será o ensaio do diálogo. (BRAKEMEIER, 2006, p. 7)

Leia as outras partes deste artigo

PARTE 1 – INTRODUÇÃO

PARTE 3 – DIÁLOGO

PARTE 4 – INTEGRAÇÃO

Artigo produzido por Tiago Valentim Garros, Biólogo, Mestre em Teologia, Doutorando pela Faculdade EST. Bolsista da Capes. E-mail: tiagogarros@gmail.com

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